Marília Calderón

Se quero me matar

Álvaro,

criação poética

de Campos conscientemente

inconscientes,

já teve, por acaso, entranhas?

foi, sempre, meramente memória

e também você será esquecido

como a própria memória, quando já não houver mais

quem lembre.

ser, por tão pouco, cansa

gera náusea, angústia, insônia

ainda assim, não quero me matar.

não que me falte propriamente vontade,

e tampouco ousadia

falta-me… fé!

sou descrente demais pra acreditar nessa vaidade

de me achar tão importantemente sem importância alguma,

que precise urgentemente morrer!

se não tenho importância alguma para o mundo dos vivos,

que dirá para o mundo dos mortos?

(muito mais mortos do que calculo)

fico por aqui mesmo, obrigada,

e a morte que venha até mim, se quiser ter comigo.

para correr atrás dela, tenho muito menos o que fazer!

é que não tenho influência ou conhecimento algum sobre qualquer mecânica ou moralidade

e, assim, qualquer moralidade, inclusive a do suicida, pouca influência exerce sobre mim.

qualquer mecânica, inclusive

a de minha própria vida, passa-me despercebidamente pelas costas

às vezes penso que sinto demais e sinto, em pensamento, o peso do universo no estômago.

mas não acredito no que penso e sinto…ainda mais como verdade inequívoca e fatal…

seria tanta vaidade e pretensão quanto a de quem se julga imortal.

eu, que acabei de chegar e já estou de partida…para quê pressa?

e, se minha presença no mundo não tem importância absolutamente nenhuma,

nada me impede de perambular à vontade, andar em círculos, quadrados, triângulos…

graças a algum ou infinitos mistérios, ser completamente doida!

(contanto que os entendidos não percebam, claro, para que não me amarrem. não me preocupo, os entendidos não percebem nada…)

vou desperdiçar essa obra rara, tanto acaso acumulado de absolutamente nada, de viver em vão?

mas se eu não significo nada pro mundo…

(de repente entristeço)

eu não significo nada pro mundo…

todo meu esforço será em vão…

tudo o que eu fizer será esquecido, tudo!

todas as minhas noites de insônia,

todas as minhas angústias, todas as minhas brigas comigo mesma,

que me fadigam tanto…

pra nada!

(e o pensamento busca sentidos)

mas…

romper com o mundo só porque ele não corresponde às minhas expectativas?

seria dar ouvidos demais ao pavor do desconhecido.

porque…há algo mais misterioso na vida do que ela própria?

a morte é certa, tem presença confirmada.

de resto, tudo permanece desconcertantemente incerto.

a morte se inscreve num ponto final. 

a vida, em linhas tortas…

e se me adapto à imprevisibilidade e desarmonia da vida,

quem disse que não acabo gostando?

(de repente me alegro)

a vida é tão imperfeita e imprevisível…

que prazer poder perambular livremente por qualquer sentido…

minha angústia não significa nada em específico!

minha insônia, meu cansaço, arrependimentos…nada!

digo, podem significar qualquer coisa.

por que então iria eu me matar?

tirar-me o enorme lazer de não ter importância absolutamente nenhuma

e, justamente por isso, simplesmente viver, sem o compromisso

de ser

sempre a mesma pessoa…

se quero me matar,

não quero me matar.

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