Marília Calderón

Qual rei?

Só o reinício.

É o que nos canta Luiz Tatit na canção “O rei”, é o que nos mostra a história (de nossa própria vida inclusive), é o que reconhece o pensamento dialético: só o que não muda é que tudo muda, e está sempre a recomeçar.

Mas tudo é muita coisa. Algo permanece, pois modificar implica ficar. Por isso a ânsia pelo consumo da novidade, o descarte das relações e esquecimento do passado é solidário de depressões, psíquicas e sociais. Qualquer mudança, mesmo revolucionária, acontece por ressonâncias e repetições.

Na clínica psicanalítica como no cenário político, o processo de superação de experiências traumáticas é composto também pela sua reencenação. É por meio da repetição que a melancolia, esse modo de dominação social internalizado psiquicamente, pode transformar-se, de fotos congeladas de batalhas perdidas, em atos de revide e transformação.

Um exemplo histórico: Tupac Amaru, último líder do povo inca, decapitado pelos espanhóis em praça pública em 1572 por lutar contra a colonização, duzentos anos depois terá seu nome reivindicado por Condorcanqui, que ao liderar revoltas indígenas se proclamará Tupac Amaru II. A referência à Tupac se repetirá então diversas vezes nos processos de lutas anticoloniais: na revolução haitiana, cujas tropas serão chamadas por Dessalines de “o exército dos incas”, entre guerrilheiros do Uruguai (como o ex-presidente José Mujica), Peru, Venezuela etc.

Recomeçar implica repetir porque o que morre/acaba nem por isso deixa de agir em nós, por meio de nossas memórias e ressonâncias que tantas vezes buscamos, de maneira fatalista e melancólica, enterrar e esquecer. Meus votos para 2022 é que não esqueçamos de nossas mortes. Esses ossos também são nossos, então que saibamos recomeçar nossa história com eles.

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