Como Round 6 pode nos orientar a melhor interpretar nosso desejo?

Qual é a principal regra de Round 6? Batatinha 1, 2 3, valendo:

1) Ou você tem dinheiro, ou sua vida não vale nada

2) Ou sua vida não vale nada, ou você não tem dinheiro

3) As duas alternativas anteriores

Os jogadores que não escolheram a alternativa 3 estão eliminades.

O jogo é simples, mas dialético. As alternativas 1 e 2 parecem contraditórias, e são, mas nem por isso se excluem. A repetição incessante do gozo mortífero do capitalismo se sustenta em contradições entre as quais esta que, subjetiva e coletivamente, não conseguimos, ainda, superar: por um lado, precisamos de dinheiro para que possamos ter acesso a alimentação, moradia, educação, saúde, diversão, prestígio etc. e nossa vida possa valer perante o Outro; por outro lado, para ganhar dinheiro – NESTE JOGO – precisamos aceitar regras segundo as quais nossa vida não vale nada perante o Outro, senão pela sua capacidade de produção. Produção de quê? Em última instância, de morte que gera lucro. Já dizia tio Marx, “o capital é trabalho morto”.

O capital é trabalho morto, o qual, como um vampiro, vive apenas para sugar o trabalho vivo, e quanto mais sobreviver, mais trabalho sugará. Karl Marx

Faz muito sentido que os patrocinadores deste jogo – em que aqueles que fuzilam são também “trabalhadores” – sejam agentes do capital financeiro, responsáveis pela promoção da ideia de que mais crédito e mais dívida são a solução para a crise econômica, quando na verdade apenas a sustentam. Pois é outra conhecida contradição imanente ao capitalismo a de, ao explorar a classe trabalhadora, retirar dela algo necessário à sobrevivência do próprio sistema: o poder de consumo. Mas o jogo faz parecer que não está em crise quando sabe fazer da crise apenas uma parte do jogo, e então “resolve” a contradição oferecendo créditos e dívidas ao consumidor, vítima da aniquilação de empregos que este mesmo mercado financeiro provoca ao subordinar a produção de bens à acumulação de lucros. Como há um limite para a expansão do endividamento a partir do qual a economia cessa de crescer, por que não criar um jogo de morte com os endividados que possibilite a continuidade das especulações financeiras por parte de sua elite, cuja religião é o dinheiro?

Um gerenciamento bastante racional do problema, mas sabemos que nem só de racionalidade vive um vampiro, digo, capitalismo: ele não apenas precisa, goza com sangue.

Na série Round 6, os vips lucram e se entretêm com a miséria e a morte alheia e o “dono da porra toda”, o velhinho 001, coloca sua própria vida em risco ao participar dos jogos de morte, buscando um resto de gozo em sua vida a cada dia mais curta e fora de controle. Brincar de ter poder sobre a vida e a morte, como que por um controle remoto diante de um game que não apenas se assiste, mas do qual se participa, pode gerar gozo a quem sente o poder de viver e participar esvair-se de suas mãos a cada instante? Só se a brincadeira não for tão nova assim, pois gozo tem a ver com repetição e pulsão de morte.

A dimensão lúdica dos jogos, o fato de nos lembrarem nossa própria infância, a todos que um dia brincamos de batatinha 1, 2, 3 ou jogos parecidos, faz-nos perceber, se quisermos, que a morte sempre esteve, ainda que apenas de maneira simbólica, lá na maioria de nossos jogos infantis: competitivos e eliminatórios. Faz parte de se preparar para a vida adulta no capitalismo aprender a competir, eliminar e vencer. Por isso, na série, o poder de decisão de participar ou não do jogo, representado pelo contrato supostamente democrático, é ilusório: porque fora do jogo, o jogo é o mesmo.

Mas se este jogo é de morte, e sofremos com ele, por que aceitamos jogá-lo? Será que realmente não temos escolha? Vale lembrar que, no jogo das bolinhas de gude – talvez o mais cruel por manipular os participantes a escolherem como dupla uma pessoa de quem gostam e depois revelar que devem eliminá-la – a única personagem que se recusa a vencer sua dupla é aquela que não consegue reconhecer em si qualquer desejo, não sabe o que fazer com o dinheiro que pode ganhar e portanto não tem motivos para vencer sua recente amiga-oponente, em quem consegue reconhecer um desejo no qual, como afirma a seu modo, vale mais a pena apostar.

Esta personagem propõe à outra – ambas mulheres e por isso rejeitadas pela maioria dos jogadores – que, ao invés de jogar, conversem. Ao escutar sua dupla, reconhece algo de seu próprio desejo apenas no desejo da outra, e decide perder o jogo para conquistá-lo.

O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação, de Jacques Lacan, aparece na cena em que um policial encontra, no quarto do irmão sumido, o cartão da empresa de especulação financeira e mortuária em que consiste o Round 6. Na terceira parte de tal livro, Lacan faz referência a obras artísticas, como Hamlet, conferindo a elas a dignidade de uma orientação ética para a psicanálise, pois o artista chega ao “melhor que se pode esperar de uma análise no fim”. Se a psicanálise é uma prática de interpretação e ação do desejo, como Round 6 pode nos orientar a melhor interpretar nosso desejo e atuar eticamente a partir dele?

Sabemos que Lacan lê o capitalismo por meio de certas homologias com a crítica marxista, mas lendo-o não a partir de uma economia política e sim a partir de uma economia libidinal. O capitalismo e suas formas de sujeição são descritos pelo psicanalista a partir dos impactos que produzem no campo do desejo e, a seus olhos, são um sistema de “espoliação do gozo”, integrando-o à lógica da produção mercantil ao produzir mais gozar (homólogo à mais valia).

Compreender tais dinâmicas de espoliação, afirma o psicanalista Vladimir Safatle, seria condição fundamental para lutas políticas efetivamente transformadoras. Bom, se chegamos ao fim da série, é porque de algum modo, como os vips, também gozamos com a miséria e a morte, afinal, verdade e ficção não se distinguem tanto assim.

        “Que algo exista realmente ou não, isso tem pouca importância. Ele pode perfeitamente existir no sentido pleno do termo, mesmo que não exista realmente.” Jacques Lacan

Se nos identificamos mais com os assassinados ou com os assassinos, se fomos mais masoquistas ou sádicos enquanto espectadores, de todo modo não toparíamos assistir ao jogo até o fim se não gozássemos um tanto com isso. A série de terror não foi a mais vista da história da Netflix porque somos todos um pouco sadomasoquistas, simplesmente, mas porque, se vivemos sob as regras deste jogo chamado capitalismo, estamos a jogar Round 6 desde a nossa mais tenra infância e o gozo, como já dito, mais do que com prazer, tem a ver com repetição.

Como cessar esta repetição mortífera? É certo que não sabemos a resposta, mas se esta primeira temporada na série nos deu alguma pista para que possamos, quem sabe um dia, criar um outro próximo jogo em que a vida tenha mais valor do que o dinheiro, tal pista parece apontar que o caminho, seja qual for, tem a ver com a escuta, a coragem de assumirmos a parte (de gozo) que nos cabe neste latifúndio e a capacidade de nos reconhecermos no desejo do outro. Acabo de notar que não falei nem sequer uma palavrinha do protagonista da série e vencedor do jogo…mas, se estamos falando em desejo, fiquemos com o lapso. Pois, como apontou Lacan, lapsos, sonhos, atos falhos e sintomas colocam em jogo o seu motor: a libido.

Outras postagens